Derecho & Cambio Social

 
 

 

A ÉTICA E A TÉCNICA EM MEDICINA[1]

Genival Veloso de França (*)

 


     

Resumo: O autor define os objetivos dos princípios básicos da ética com respeito às atividades de saúde, no tocante ao que se refere principalmente à conduta dos profissionais e das instituições relacionadas com a tecnologia na assistência médica.

Unitermos: Ética e Tecnologia. Tecnologia e humanismo. A ética da tecnologia médica.

Introdução

A humanidade vive uma crise que remonta os valores e os conceitos que ela tem sobre si mesma. É a crise da identidade do homem e do seu relacionamento com a realidade. A idéia de que o ser humano é a medida de todas as coisas começa a perder o seu sentido nos dias de hoje.

Uma das razões desta mudança certamente está no fato de que a ciência e a tecnologia conseguiram modelar um tipo de relacionamento entre o homem e a natureza, marcado pelo descompasso entre as ciências naturais e as ciências humanas. E tudo isto tem um sentido: a incorporação da cultura pelo capital que, entre outros, dita um código de propriedade e protege o direito de patente.

A primeira advertência que se conhece a este respeito partiu da Organização das Nações Unidas, em 1975, através do documento chamado “Declaração sobre a Utilização do Progresso Científico e Tecnológico no Interesse da Paz e em Benefício da Humanidade”, onde se exalta o progresso como forma de melhorar as condições de vida dos povos e das nações, mas chama atenção para os seus perigos, principalmente no que se refere aos direitos humanos e às liberdades fundamentais dos indivíduos.

Ninguém discute que a ciência e a tecnologia constituam na atualidade a principal força produtiva da sociedade. Nem podemos deixar de reconhecer que a não-tecnologia é uma atitude anti-ética. Portanto, o que se discute não é a tecnologia em si, mas sua tirania, seu monopólio na construção da convivência humana. Até podemos necessitar dela, porém sem o seu caráter de dominação e de hegemonia. Enfim, o importante será mantermos sempre uma reflexão ética ajustada aos novos paradigmas científicos sem o racionalismo utilitarista que se utiliza a sociedade consumista.

No que tange à medicina, ela necessita de uma ordem ditada pela deontologia e moldada em regras de conduta que balizem os deveres e obrigações dos seus agentes, principalmente quando esta nova ordem permitiu uma mudança nunca imaginável. Assim, este formidável avanço, mesmo significativo pelos grandes resultados, não poderia passar sem uma análise mais cuidadosa, sempre no sentido de preservar os interesses do progresso e a dignidade humana.

Por muito tempo a medicina moveu-se dentro de um cenário misterioso e mágico ante as razões desconhecidas da vida e da morte. Fundamentava-se em bases empíricas valorizando sintomas e sinais e preocupada apenas em aliviar a dor. Somente a partir da metade do século passado, com mais vigor, incorporou suas atividades à biotecnologia, principalmente no uso dos meios propedêuticos, como forma de avançar a prática diagnóstica.

O grande risco no futuro é que a medicina deixe de ser ciência e arte a serviço da melhoria das condições e dos níveis de vida individual e coletivo e passe a manipular substancialmente a vida humana A medicina preditiva e o progresso assombroso das ciências genéticas criam essa possibilidade quando se procura selecionar o tipo homem que desejamos. Neste contexto elitista o corpo humano surge como um projeto ambicioso dos nossos sonhos coletivos. O eugenismo moderno já existe se não como uma ideologia coletiva, mas como legitimação de um eugenismo familiar quando se apregoa, por exemplo, o aborto dito eugenésico.

A vida humana como valor ético.     

O primeiro compromisso ético é com a vida e ela é de tal magnitude que, mesmo violentada pela insensibilidade e pela indiferença do mundo tecnicista, a consciência atual teima em protegê-la nas situações mais precárias e excepcionais. Na hora em que o direito da força se instala negando o próprio Direito e quando tudo é paradoxal e inconcebível, ainda assim o bem da vida é de tal grandeza que a intuição humana a protege da insânia coletiva, criando-se regras que impeçam a prática de crueldades inúteis.

            Quando a paz passa a ser apenas um instante entre dois tumultos, o homem tenta encontrar nos céus do amanhã uma aurora de salvação. A ciência, de forma desesperada, convoca os cientistas a se debruçarem  sobre as mesas de seus laboratórios, na procura de meios salvadores da vida. Nas mesas das conversações internacionais, mesmo entre intrigas e astúcias, os líderes do mundo inteiro tentam se reencontrar com a mais irrecusável de suas normas: o respeito pela vida humana.

            Assim, no âmago de todos os valores está o mais indeclinável de todos eles: a vida do homem. Sem ela, não existe a pessoa humana. Não existe a base de sua identidade. A partir desta concepção, hoje, mais ainda, a vida passa a ser respeitada e protegida não só como um bem afetivo ou patrimonial, mas pelo que ela se reveste de valor ético. Não se constitui apenas de um meio de continuidade biológica, mas de uma qualidade e de uma dignidade que faz com que cada um realize seu destino de criatura humana.

            Sendo a ética uma proposta em favor do bem-comum, não pode ela ser desvinculada do conjunto das necessidades  individuais e coletivas. Faz parte de um sistema de forças que conduz o homem na luta pela liberdade e pela justiça social.

            Por isso a ética não pode ser uma opção neutra e acomodada, estéril e formalista, complacente com uma estrutura social perversa que cria profundos desníveis e golpeia a comunidade de forma cruel e impiedosa. A ética deve ser entendida como o norte de um projeto capaz de atingir amplos setores da sociedade. Passou-se o tempo em que a ética era apenas um elenco de decisões pessoais, interiorizadas, desempenhando simples papel de etiqueta. Desse modo, se ela não for sensível às modificações propostas com a concepção que se tem da sociedade e do homem, será apenas uma coisa inócua e desprezível.

            Portanto, tudo isso leva a crer que há motivos políticos e sociais que começam a reclamar dos médicos posições mais coerentes com a realidade que se vive. Um modelo capaz de revelar um melhor papel que o Código de Ética possa desempenhar no complexo projeto de seus direitos e deveres, e que possa apontar com justiça e equilíbrio o caminho ideal  nas justas e reclamadas exigências do bem-comum.

            Se não, que ética é esta que não manifesta sua profunda frustração ante o crescente confronto entre as possibilidades concretas da ciência e o bem-estar real?  Daí a necessidade de uma ética capaz de alcançar cada vez mais a pessoa do homem de agora, denunciando os perigos de danos, tendo na maioria das vezes o traço indelével da insensibilidade e do interesse escuso. 

Desenvolvimento tecnológico e implicações éticas na prática médica

A verdade é que, principalmente a partir do último decênio do século passado, passou-se a refletir mais demoradamente sobre as transformações conceituais que emergem das novas formas de analisar a medicina em nossos dias, na concepção de que para se alcançar os níveis de vida e de saúde necessita-se do concurso de uma tecnologia cada vez mais avançada.

Um poderoso instrumento tecnológico – os meios modernos de informação, talvez seja o maior recurso capaz de fechar a brecha entre “o mundo que é” e “o mundo que poderia ser”, corroendo a ignorância causadora da má saúde e do sofrimento.

            A criação de redes internacionais sobre informação sanitária com certeza será a chave do desenvolvimento das ciências médicas, principalmente as estratégias de saúde primária, pois ela se configura como um instrumento de transferência de informações.

            De um certo tempo para cá, inúmeras têm sido as oportunidades em que os médicos se valeram dos recursos tecnológicos da comunicação, a exemplo do fax, do telefone, da videoconferência e do correio eletrônico, como forma de atender e beneficiar melhor seus pacientes. Estes meios mais sofisticados da recente tecnologia da informação por certo vão facilitar ainda mais não só o intercâmbio dos profissionais de saúde entre si e com os pacientes mas também propiciar a resolução à distância de casos de ordem propedêutica e terapêutica. Já é possível, hoje, detectar enfartes por exames através do telefone em tempo real, ter sinais vitais do paciente transmitidos ao médico pela Web e poder realizar, por especialistas internacionais, cirurgias por videoconferências..

            A verdade é que as redes internacionais de computadores eliminaram os limites geográficos, permitindo uma nova e fascinante experiência na sociedade global ligada eletronicamente, desafiando, assim, todas as formas convencionais do exercício tradicional da medicina. Nisto pode-se dizer que se ganha na redução de tempo e despesas na locomoção dos pacientes, na interação entre profissionais, na qualidade da reciclagem médica, na desospitalização, no concurso rápido de profissionais de diversas áreas em acidentes de massa, no gerenciamento dos recursos em saúde, na descentralização da assistência à saúde, entre tantos.

Não há como desconhecer que o uso adequado desta inovadora forma de atendimento ao paciente pode trazer inúmeras e potenciais vantagens, e, ainda, a possibilidade de que tal estratégia tem de avançar cada vez mais. Não só pelo fato do pronto-atendimento em locais mais remotos, senão ainda pela oportunidade de acesso aos especialistas da medicina curativa ou preventiva.

A tecnologia médica e o princípio da equidade

Os avanços tecnológicos em medicina podem ser classificados em três categorias:   1 – os que permitem a cura das doenças a custo moderado; 2 – os que facilitam e fazem prevenir as doenças e a promoção da saúde com pouco gasto; 3 -  os que permitem manter a saúde e uma qualidade de vida aceitável, porém para sua manutenção necessitam grandes investimentos materiais e humanos.

Este último tipo de avanço tecnológico é o que cria os maiores dilemas frente a necessidade de progredir tecnologicamente e de avançar em termos de saúde. Além do mais é necessário entender que o fato de determinado procedimento ser tecnicamente consagrado não implica necessariamente, de forma absoluta, que seja eticamente certo. Assim, o ato médico disponível pode ser visto por dois aspectos: o do procedimento correto e o da retidão moral[2].

Ninguém nega que a medicina associada à tecnologia tem oportunidades maiores de diagnosticar e curar pela sua precisão, mesmo levando-se em conta o seu alto custo e o seu risco cada vez maior. A prática atual da medicina mostra que já nos deparamos com terríveis conflitos éticos quando se discute a transplantologia de massa e as modernas técnicas de imagem que, apesar dos induvidáveis resultados seus elevados custos  limitam a assistência de um número considerável de outros indivíduos que necessitam de diagnóstico e de tratamento.

Salta a vista de todos o emprego abusivo dos meios tecnológicos na prática medica hodierna, quando muitos ainda ignoram a utilidade e os resultados das provas que solicitam. Some-se a isso a omissão do profissional na participação crítica do processo de transformação que se verifica em seu derredor.

Vivemos tempos em que se depende de forma crescente da ciência e da tecnologia, seja nos processos de produção, de educação e de comunicação e transporte, seja no campo das ciências da saúde. Verdade se diga, muitas tem sido as contribuições que se conquistam no sentido de aumentar a esperança de vida. Todavia, na esteira desta melhoria das condições de vida surgem alguns problemas e riscos que exigem uma reflexão mais demorada. Assim, não é mistério o perigo da contaminação, a deteriorização do meio ambiente, o empobrecimento da flora e da fauna, os acidentes e as doenças relacionadas à tecnologia.

A ciência e a tecnologia são instrumentos irrecusáveis na transformação do nosso mundo, das nossas relações e dos nossos costumes. No entanto não são fatores que apenas por si justifiquem os meios. A verdade é que o avanço para a tecnologia no campo biomédico nos leva a perder a dimensão das pessoas como seres humanos e descaracterizar a medicina como arte.

            O grande problema é não usar a ciência e a tecnologia nos segredos da vida como quem age num jogo de azar, como dizia Hans Jonas[3].  Quando se reporta, por exemplo, à manipulação genética, faz as seguintes indagações: Estamos qualificados para essa tarefa? Quem serão os escultores da nova imagem do homem? Segundo que critérios? Obedecendo a que modelos? Teremos o direito de alterar nosso patrimônio genético? Finalmente, adverte: "Ante o potencial quase escatológico de nossa tecnologia, a ignorância sobre as últimas conseqüências de nossos atos será em si mesma razão suficiente para uma moderação responsável”.

Outro risco, sem dúvida, é que esta nova ordem possa tolher a liberdade e abalar o juízo crítico numa profissão como a medicina onde os riscos e benefícios constituem um denominador comum para cada decisão.

Tecnologia médica e relação médico-paciente

É muito importante que perguntemos sempre, quando diante de um paciente: “Estou fazendo com ele o que gostaria que fizessem comigo?” O exercício da medicina não é outra coisa senão o encontro da ciência com a consciência.

Miguel Unamunu[4] definiu o paciente como "um ser humano, de carne e osso, que sofre, ama, pensa e sonha". Nem sempre nos lembramos do que é justo e necessário.

Não podemos omitir o fato de a Medicina atual ter tomado rumos diferentes da de antigamente. Uma verdadeira multidão de acontecimentos e situações começa a se verificar em nosso derredor como contingência da modernização de meios e de pensamentos. Não estamos mais na época em que o medico exercia, de forma quase solitária e espiritual, uma atividade junto a quem pessoalmente conhecia.

Este extraordinário e excitante progresso obrigou o médico a enfrentar situações novas, algumas delas até em conflito com seu passado hipocrático. Situações jamais imagináveis começam a compor a rotina comum da prática médica, como os transplantes de órgãos e tecidos, a fertilização assistida, o descarte de embriões e o próprio uso da cartografia do gene humano. E do desdobramento disso, a necessidade de se criar limites de regras éticas, colocando cada coisa no seu devido lugar: de um lado, a necessidade de se propiciar condições de vida e de saúde cada vez melhor; de outro, a preocupação de não se descuidar da dignidade humana

 A Medicina-Arte agoniza nas mãos da Medicina-Técnica. A erudição médica vai sendo substituída por uma sólida estrutura instrumental. O medico de família morreu. Deu lugar ao técnico altamente especializado, que trabalha de forma fria e impessoal voltado quase que exclusivamente para esses meios extraordinários que a tecnologia do momento pode oferecer. Surge o medico de plantão, ou de turno.

Esse médico foi obrigado a trocar uma deontologia clássica e universal por um sistema de normas compatíveis com a realidade vigente, nem sempre ajustáveis a sua consciência e determinação. Viu-se envolvido por uma terrível espiral irreversível, onde certos valores afetivos, consagrados como úteis e necessários, converteram-se em solicitações que o imediatismo exige para a satisfação de ordem puramente material. Não se diga que tudo isso tem como responsável o medico. Nasceu do próprio mundo.

Mudou também o paciente. Antes, era ele um grande preocupado com suas obrigações. Hoje ele o é também com seus direitos. Já começa a contestar e exigir diversas condutas ou faz da doença a matéria-prima de seus interesses.

A sociedade, por sua vez, também não ficou indiferente às mudanças. A sociedade capitalista-industrial, utilitarista e pragmática, embasada em parâmetros de produção e consumo, sacrifica o indivíduo como ser humano e tende a supervalorização do coletivo. Gera­-se uma mentalidade tecnocrata embriagada com os vertiginosos sucessos em que o homem é despersonalizado e desvalorizado como uma simples coisa, inexpressivamente, colocado dentro dessa pungente realidade que ele próprio criou e não pode mais controlar. Este pensamento instituiu uma modalidade de medicina, em que o homem passou a ser um grande enfermo numa coletividade crescentemente mais alienada. Essa sociedade criou a medicina dos sinto­mas.

Também não se pode dizer que apenas o uso do arsenal tecnológico tenha sido o responsável pelo evidente desgaste da relação médico-paciente. O que houve na verdade foi a decadência do relacionamento humano.

 A educação médica e a tecnologia

            O ensino da medicina tem profundas implicações com a tecnologia moderna e as escolas médicas assumem um grande papel neste particular, em virtude da possibilidade que dispõem os hospitais universitários em termos de diagnósticos e procedimentos.

Por incrível que pareça, no campo didático médico, os fundamentos da semiologia são empanados pelas máquinas de tratamento e diagnóstico. Este cientificismo exagerado das práticas didáticas, desvinculado da arte propedêutica cria uma relação estranha entre o médico e o paciente, pois o que se verifica é muito mais uma relação entre o profissional e o equipamento.

Entende-se que nas ciências da saúde formar um profissional não é apenas um processo de ensino, mas é também um processo de relações de ensino. No primeiro tem-se um cronograma de metas de meios e condutas na sua formação profissional. Já o processo de relações de ensino é uma filosofia que reflete sobre vínculos entre professores e alunos com vistas ao papel que cada novo profissional desempenhará em favor da sociedade.

            Dentro desta concepção, a opção por uma "medicina armada" leva de forma inexorável à criação de uma "formação médica tecnológica". A educação médica, notadamente nos hospitais universitários, assimilam propostas que servem muito mais às empresas e fabricantes de modernos aparelhos do que à criação de um modelo de serviços e estratégias em favor dos níveis de vida e de saúde dos indivíduos e das populações.

            A partir dos anos 80 verificou-se entre nós um movimento articulado principalmente pelas associações de docentes médicos no sentido de promover reformas educacionais nas escolas médicas. Tais reformas teriam como justificativas a própria reorganização da prática médica em face das modificações que chegavam da prática em saúde individual e coletiva.

Na verdade, este movimento teve maior ênfase coma criação da ALAFEM - Associação Latino-Americana de Faculdades e Escolas de Medicina – quando se discutia a incorporação dos avanços da tecnologia na prática e na educação médicas. Naquela época, as propostas para a reorientação pedagógica na área da saúde  eram: a) redefinição do objeto de estudo substituindo práticas educativas de cada uma das disciplinas, por processos em torno de conhecimentos referidos à saúde da população, nos marcos de uma concepção do processo saúde-doença; b) desenvolvimento de enfoques inter-disciplinares; c) desenvolvimento da integração docente-assistencial concebida como um verdadeiro processo de serviço à comunidade, no qual as ações de saúde devem ser vistas como objetos de pesquisa, geradoras de novos conhecimentos e de novas práticas de atenção; d) incorporação e reconceitualização das ciências sociais nos processos educacionais, ainda predominantemente complementar e fragmentada na maioria das escolas, mas cuja superação é apontada pelo desenvolvimento da medicina social; e) inserção da universidade, de forma crítica, nos processos de transformação dos sistemas de saúde[5] 

A OPAS, em 1992, junto com as associações nacionais de educação médica latino-americanas, apontou em um documento de referência intitulado "As mudanças na profissão médica e sua influência sobre a educação médica", severas críticas à incorporação tecnológica indiscriminada, nos seguintes termos: a) há necessidade de gerar um novo modelo científico, biomédico e social que projete e fundamente um novo paradigma educacional em função do indivíduo e da sociedade; b) há necessidade de um novo sistema de valores que transcenda a influência da mudança da prática, reconstrua a ética do exercício profissional e garanta a função social do atendimento às necessidades de saúde da população; c) há vantagens no desenvolvimento de trabalho interdisciplinar e de metodologias problematizadoras.

Em suma, todo este esforço na conquista dos meios tecnológicos só se justifica se eles servirem para desenvolver nos futuros médicos uma compreensão não apenas do que é mais moderno e avançado, porém uma estratégia capaz de estabelecer uma relação médico-paciente e médico-família dentro de padrões éticos, técnicos e humanísticos legítimos e adequados a cada realidade. Ou seja, formar profissionais mais solidários, críticos e criativos, capazes de utilizarem os meios tecnológicos disponíveis politicamente, subordinando o desenvolvimento tecnológico aos interesses e necessidades da saúde da população e do exercício digno, responsável e de qualidade.

Não é exagero dizer, portanto, que a saúde e a doença, como fenômenos puramente sociais, exigem soluções políticas. Reclama-se do médico uma saída imediata em busca de um uma conscientização crítica, no sentido de não perder seu direito de decisão. Ele não pode permanecer na periferia das doenças. Tem de reduzir seu poder sobre o indivíduo e ampliar sua capacidade de intervenção sobre o meio. Assim, as regras éticas contemporâneas, mesmo sem se distanciarem das influências hipocráticas, serão necessariamente incorporadas às idéias oriundas de muitos anos de exercício profissional, de sentidas reflexões e de duros confrontos.

Os riscos da medicina baseada em evidências

Tem-se a medicina baseada em evidências como uma estratégia de utilização judiciosa e racional da melhor evidência científica disponível para se tomar decisões sobre cuidados aos pacientes. Ou o processo de sempre descobrir, avaliar e encontrar resultados de investigação com base nas decisões clinicas[6].

Significaria, assim, o emprego do que se depreende melhor dos resultados científicos disponíveis procedentes da pesquisa e da investigação, e não do que possam dispor as teorias fisiopatológicas e a autoridade ou experiência individual. Uma medicina baseada na análise estatística de efeitos. Em suma, uma medicina de resultados.

Desta forma, o conceito de medicina baseada em evidências condiciona-se ao fato de que as decisões clínicas e os cuidados de saúde devem embasar-se nas evidências atuais, que chegam por publicações científicas especializadas em estudos e trabalhos e que podem ser criticamente avaliados e recomendados. Ou seja, que a aplicação dos meios e métodos médicos deva concentrar-se na informação obtida na literatura “cientificamente válida e relevante”, com direta implicação à prática médica dos cuidados de saúde. Isto redunda, necessariamente, na busca incessante da localização da “informação precisa”.

Da avaliação solitária e subjetiva do clínico passa-se a reconhecer como de reconhecido valor científico apenas as informações oriundas da pesquisa de cientistas de peso em estudos demorados e com expressivo número de pacientes observados nos serviços de excelência.

Muitos dos seus apologistas defendem tal modelo como o que melhor atende a uma medicina de baixo custo baseada na sua racionalização e eficiência. Puro engano. A partir do momento que esta forma de paradigma médico despreza a experiência clínica acumulada, os fenômenos fisiopatológícos captados pelo propedêutica clássica e passa a valorizar os padrões de excelência ditados pelos grandes centros que priorizam a moderna tecnologia médica, fica claro que esta não é a forma de se pensar em racionalização de despesas.

Em algumas oportunidades, o que se verifica, mesmo, é uma política de compensação que em outra coisa não se firma senão na redução de gastos com hotelaria, diminuição do tempo de internamento, padronização terapêutica, restrição de solicitação de exames subsidiários e indisfarçável aviltamento dos salários profissionais – fatores ditados por um sistema empresarial que promove a colonização médica.

A experiência vem demonstrando que os sistemas de auditoria privados, os sistemas de segurança, a medicina baseada em custos, o controle obstinado do ato médico, a estipulação de condutas profissionais em questões de tratamentos e  solicitação de exames não deixam de ser uma medida de desconfiança e uma conduta anti-ética. Um sentido de moralidade implica em confiança, parceria e responsabilidade. Todo sistema baseado em desconfiança tem baixo rendimento.

O benefício, a produtividade e a qualidade, que no mundo dos negócios ainda estão em moda, em medicina a palavra chave é e será ética. E a grande vantagem é que ela não tem alto custo operacional.

É evidente que a boa prática médica sempre resultará da experiência, responsabilidade, competência e respeito à dignidade do assistido. Ou seja, aquela na qual as pessoas são tratadas com respeito, sentimento e eficiência.

Ainda mais: a facilidade de analisar e utilizar a clinica priorizada em evidências não está ainda na disponibilidade e domínio de todos os que exercem a medicina. As publicações médicas, com raras exceções, são de utilidade discutível na prática clínica do dia-a-dia. Perde-se muito tempo com consultas e o resultado, em nível de resolubilidade, é até certo ponto desprezível.

Nestes últimos anos, ocorreu uma verdadeira enxurrada de publicações médicas, algumas com notória contradição, o que torna mais complicada a decisão dos médicos, principalmente dos que estão na ponta do sistema. Isto, sem dúvida, reflete negativamente sobre as ações de saúde, não apenas pelos gastos desnecessários e tempo perdido, mas pelos prejuízos que pode trazer aos pacientes. Atualmente, publica-se no mundo uma média 30 mil revistas biomédicas/ano o que faz com que para alguém estar mais ou menos atualizado em temas específicos deva ler cerca de 300 artigos e 100 editoriais por mês, veiculados em revistas de grande destaque [7].

            No instante em que a medicina baseada em evidências tenta “clicherar” o atendimento baseado unicamente em dados estatísticos, fugindo da avaliação da experiência pessoal e da capacidade de conduta do médico diante de cada caso, desfaz o conceito de que “não existem doenças e sim doentes”.

A prática médica sempre se baseará num projeto que alie a arte clínica e o cálculo das probabilidades. Por isso, já se disse que a medicina clínica, por mais avançada que seja, será sempre a ciência das probabilidades e a arte das incertezas. Mesmo que uma ou outra evidência, por mais aparente revele-se expressivamente denunciadora não deve ser concluída como “fato”. 

A medicina não conta com os benefícios da exatidão matemática nem se propõe oferecer propostas perfeitas e uniformes. É a mais circunstancial das ciências e o ato médico, o mais circunstancial dos atos humanos. Por isso, o conhecimento médico nunca pode ser certo, mas apenas provável. Em medicina - principalmente na clínica, que é meramente arte -, o provável nunca é uma abstração, mas aquilo que se situa entre o possível e o real: a chamada “probabilidade objetiva”. A arte clínica é bem mais uma ordem do pensar do que do ser. Isto não torna o ato médico baseado na intenção menos importante do que o baseado na evidência.

Toda ciência experimental é saber dedutivo, e não indutivo: tem uma dedução empírica, nunca completa, e suas conclusões são sempre prováveis. O princípio aristotélico de que as verdades científicas são sempre certas e verdadeiras tende a modificar-se quando o assunto em discussão é uma ciência indutiva e experimental.

            Certos conceitos podem estar transformando a medicina numa “sacola de truques”[8]. Outro risco é o fato de os profissionais jovens aceitarem alguma idéia nova não pela convicção de seu valor científico, mas tão-somente pela publicação ser de língua estranha ou originária de centros alegadamente avançados. Ou que se venha desdenhar da relação médico-paciente como um ato romântico não mais cabível neste programa de exatidão metodológica[9].

            Até podemos entender que muitas das decisões tomadas em epidemiologia clássica baseiem-se em dados estatísticos, na tentativa de se criarem novas “evidências” para a prática das ações em medicina preventiva. Mas daí a dizer que tal lógica deve conduzir e definir as questões de natureza clínica parece exagero. Primeiro, a clínica trata das conseqüências e a epidemiologia das causas; depois, na clínica, o centro do interesse está no prognóstico através da prevenção secundária e terciária, e na epidemiologia em fatores de risco na prevenção primária; por fim, a clínica baseia-se num raciocínio dedutivo (da doença para o caso concreto) e a epidemiologia, no indutivo (dos casos para a doença).

O risco das ideologias no campo da saúde reside no  seu  caráter reacionário e centralizador por não  admitir o pensar ou  o agir individual. Sua inclinação é pelas idéias abstratas. E o mais desanimador no caso da medicina baseada em evidências é que quanto mais complexo é o quadro clínico, menos evidências científicas ela dispõe para uma convincente tomada de decisão.

            Diante do exposto, fica bem evidente que ninguém de bom senso poderia voltar-se contra, ou pelo menos ficar indiferente, a todo este acervo cultural e contribuição tecnológica que vem se inserindo às ciências médicas nos últimos tempos. Nem tampouco o que daí pode resultar como contribuição na luta cada vez mais eficaz contra as doenças e em favor dos melhores níveis de vida e de saúde da população.

            Todavia, não se pode admitir serenamente que a medicina abra mão da intuição, das teorias fisiopatológicas consagradas e da experiência clínica pessoal, pois não existe nenhuma análise metodológica nem nenhuma prova científica aprimorada que não possua como partida a vivência e observação individual na prática profissional.

            O ideal será, sempre, a associação da investigação clínica científica, do ensino médico continuado, das teorias fisiopatológicas consagradas e da contribuição de cada experiência pessoal.  A análise e aplicação racional da informação científica – direcionadas ao individual ou coletivo, sob a ótica do humanismo que sempre deu à profissão médica um lugar de destaque.

Conclusões

            Após todas essas considerações, entendemos que se as técnicas e os recursos utilizados na prática médica não alcançarem o sentido de proteção e de melhoria da qualidade de vida do ser humano, tudo isso não passa de uma coisa pobre e mesquinha.

            Fica muito difícil justificar uma evolução tão fantástica da tecnologia e das ciências médicas que não esteja seriamente comprometida com a melhoria de vida e com o bem-estar das pessoas, mas que se incline deliberadamente como forma de dominação e usurpação da cultura médica pela máquina.

            No uso de cada procedimento diagnóstico ou terapêutico não se deve apenas avaliar a correlação entre o risco e o benefício, mas saber a utilidade desse recurso que se vai aplicar. Muitos desses meios diagnósticos são de resultado altamente confiáveis e outros, malgrado todo empenho ainda se mostram de baixa certeza, de pouca especificidade e de alto custo, e por isso não estão livres de contestação.

 

Bibliografia

1. Barbosa de Deus B, Dallari SG. Bioética e direito. Bioética, 1:91-5, 1993.

2. Clotet J. Reconhecimento e institucionalização da autonomia do paciente: um estudo. Bioética, 1:157-63, 1993.

3. Costa Neto, MM Tecnologia e saúde: causa e efeito? In: Garrafa, V; Costa, SIF. A bioética no século XXI, Editora UnB, Brasília, pp145-150, 2000

4. Ferraz S. Manipulação biológica e princípios constitucionais: uma introdução. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991.

5. França, GV. Comentários ao Código de Ética Médica, 4ª edição,  Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan S/A., 2002

6. França, GV. Direito médico, 7ª edição. São Paulo: Fundo Editorial Byk, 2001

7. França, GV. Medicina legal, 6ª edição. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan S/A., 2001

8. Haering B. Manipulação biológica. São Paulo: Edições Paulinas, 1977.

9. Handyside, AH e Col. Biopsy of human preimplantation embrios and sexing by DNA amplification. Lancet, 1:347-54, 1989.

10. Mendes, EV. A evolução histórica da prática médica: suas implicações no ensino, na pesquisa e na tecnologia médica. Belo Horizonte, PUC, 124p, 1984.

11. Scraiber, LB. Educação médica e capitalismo: um estudo das relações educação e prática médica na ordem social capitalista. São Paulo: Hucitec, 133p, 1989.

12. Rodriguez, MI. Tendëncias de la educación médica en América Latina en los últimos quince años. Las profesiones en México, Medicina, México, n.3, 1990.

 


 

NOTAS:

 

[1] Palestra apresentada durante o IV Simpósio Internacional de  Responsabilidade Civil do Médico, Atibaia, 24 e 25 de junho de 2004.

[2] Gracia, D - Medicina Basada em Evidencias, Bioética, 2000; 8: 74-84.

 [3] In El principio de la responsabilidad: ensayo de uma ética para la civilización tecnológica. Barcelona: Herder, 1995.

[4] in La vida Literaria, Madrid: Espasa-Calpe. 1977.

[5] Rodriguez, MI. Tendëncias de la educación médica en América Latina en los últimos quince años. Las profesiones en México, Medicina, México, n.3, 1990.

[6] Rosenberg, WMC – Evidence based medicine: An approach to clinical problem solving, 1995, BJM, 310:1122-1126.

 [7] Silva, JJS – Medicina basada en evidencia: Um desafio permanente, Revista Hospital Clinico niversidad de Chile, 1999, 2:142-144.

[8] Bauman, Z – Modernidade e ambivalência, Rio de Janeiro: Jorge Zahaar, 1995.

[9] Duclos, J – Medicina basada em evidencias: Una estratégia que acerca ou aleja de la medicina interna?, Revista Chile, 1999, 127:1398-1402.


 

(**) Médico, Profesor, conferencista internacional en Derecho Médico, Titular de Medicina Legal  Universidad Federal da Paraíba - Brasil; Profesor Titular de Medicina Legal  Escuela Superior de la Magistratura, Paraíba - Brasil; Vice-Presidente de la  Sociedad Brasilera de Medicina Legal; Socio Fundador y  Miembro de la Junta Directiva de la  Sociedad Iberoamericana de Derecho Médico. Profesor Visitante Universidad Estadual de Montes Claros - Minas Gerais - Brasil. Autor de diversos libros y publicaciones en materia de Derecho Médico. Presidente Honorario de la Sociedad Brasilera de Derecho Médico(SODIME)

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