Derecho & Cambio Social

 
 

 

INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA ADVERSA NO DIREITO TRIBUTÁRIO EM FACE DO TRATAMENTO DIFERENCIADO ÀS MICROEMPRESAS E EMPRESAS DE PEQUENO PORTE

Cesar Maurício Zanluchi (*)

Maria de Fátima Ribeiro (**)

 


   

1.Introdução 2. Apropriação indébita 2.1. Apropriação indébita tributária 3. Inexigibilidade de conduta adversa 3.1. Inexigibilidade de conduta adversa no Direito Tributário, em face do tratamento diferenciado dispensado às microempresas e empresas de pequeno porte 4. Função social da empresa e a punição por ato delituoso 5.Conclusão 6. Bibliografia.

 

1. Introdução

              Na tentativa de arrecadar cada vez mais tributos, o Estado realiza rigorosos controles contra a sonegação fiscal e a apropriação indébita de valores retidos na fonte, por parte dos responsáveis tributários, através da edição de legislação específica e constante fiscalização.

              Em decorrência da atuação do Estado, nos últimos anos, a figura dos crimes tributários passou a ter uma conotação mais presente nos tribunais em todo o país, principalmente com relação à apropriação indébita de valores fiscais.

            Nos termos prescritos pelo Art. 168 do Código Penal, a apropriação indébita é um tipo penal onde uma pessoa, estando de posse ou detenção de bem alheio, passa a utilizá-lo como se seu fosse, recusando-se a devolvê-lo.

            No Direito Tributário, a caracterização da apropriação indébita vem promovendo o nascimento de teses antagônicas. O fato de se tratar de bem fungível, pode vir a causar uma certa confusão, haja vista o domínio não se transferir pela vontade do agente em se apropriar de coisa alheia, mas pela entrega do bem a outrem.

            O crime de apropriação indébita pode ser caracterizado nas relações tributárias, mesmo se tratando de bem fungível. Em casos como a retenção na fonte do imposto de renda, o agente recebe apenas a incumbência de guarda do dinheiro, portanto, não se dá a transferência na entrega, mas apenas a responsabilidade de cuidar. Mas quando este mesmo agente, já de posse do bem, se nega a repassá-lo ao fisco, passando a utilizá-lo como se seu fosse, nasce a figura delitiva do crime de apropriação indébita tributária.

            A figura delitiva existe. Ocorreu um fato típico e antijurídico. Resta saber agora, se realmente há a vontade de apropriar-se dos valores tributáveis retidos na fonte, concretizando a culpabilidade, para ser aplicada a penalização do agente.

 

            Os pequenos empresários, diante de dificuldades financeiras provenientes de circunstâncias anormais ao desenvolvimento empresarial, buscam meios, muitas vezes ilegais, para tentar minimizar os danos ocasionados em suas empresas.

              Com referência aos pequenos empresários, a Constituição Federal de 1988, dispôs que o Estado tem a responsabilidade de, como forma de exercer o patronato da ordem econômica, conceder às microempresas e empresas de pequeno porte um tratamento fiscal mais benéfico.

              Mas este tratamento mais benéfico toma conotações diversas das prescritas pela Constituição, quando aplicado pelo Estado. O Art. 179 determina que as empresas de pequeno porte e as microempresas têm direito a um tratamento diferenciado.

              A Lei nº 9.317/96[1] do SIMPLES federal foi criada como forma de regulamentar o Art. 179 da Constituição Federal. Porém, o Estado impõe restrições às empresas capazes de promover a inversão da vontade do legislador constituinte. Ao invés de promover um ambiente mais favorável aos pequenos empresários dentro do mercado econômico, privilegiando o princípio da livre concorrência, cria barreiras ocasionando dificuldades financeiras para a manutenção da atividade empresarial.

              Diante destas dificuldades, promovidas muitas vezes pelo próprio Estado, o empresário, para manter as atividades de sua empresa, utiliza-se de valores tributáveis retidos na fonte para equilibrar as contas, caracterizando o crime de apropriação indébita. Mas, a punição do agente, nestas circunstâncias, não deve ser aplicada posto não estar presente a vontade delitiva.

              Com o presente estudo pretende-se analisar o tipo penal da apropriação indébita para especificar com maior amplitude a apropriação indébita em sede do Direito Tributário, com uma descrição histórica sobre a temática, partindo da Constituição Federal à legislação atualmente aplicável com embasamento doutrinário brasileiro.

              O ponto alto da pesquisa resulta em descrever a inexigibilidade de conduta adversa no Direito Tributário. Deve ser ressaltado que tal estudo versará o tratamento diferenciado dispensado às microempresas e empresas de pequeno porte, uma vez que estes empresários encontram dificuldades para a manutenção de seus negócios no mercado competitivo face à atuação do Estado e nas relações econômicas, financeiras e concorrenciais.

              A característica essencial da análise é ressaltada pelos aspectos de excludentes de culpabilidade. Nesta trilha investiga-se também a função social da empresa e a punição do ato delituoso, considerando a intervenção do Estado no domínio econômico através das diretrizes constitucionais, guardadas as proporções aplicadas às microempresas e empresas de pequeno porte e a importância do papel do Estado no referido cenário  nacional.

2. Apropriação Indébita

            Apropriação indébita é o termo utilizado para descrever o tipo penal onde uma pessoa, estando de posse ou detenção de bem alheio, apropria-se do mesmo como se seu fosse. O verbo apropriar-se já traz a idéia desta ocorrência, posto ser seu significado o ato de fazer sua coisa pertencente a outrem.

            O Art. 168 do Código Penal prescreve como ilícito o ato de apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posso ou detenção.

            Pela prescrição do Art. 168, somente ocorrerá o delito ali descrito se houver a posse ou detenção pacífica do bem. Não se admite fraude, simulação ou emprego de força para a obtenção do bem, uma vez que se caracterizaria uma outra espécie penal. A coisa deve ser entregue livremente ao agente do delito.

            Para a composição da apropriação indébita deve estar presente a boa-fé do sujeito ativo do delito para a obtenção da posse ou da detenção do bem. O bem é entregue ao agente livre de qualquer ato que possa vir a eivar a boa-fé do agente.

            O bem é entregue ao agente para desempenhar a guarda, utilização ou a sua entrega à terceiro. A pessoa que detêm a posse provisória de um bem pertencente a outrem, mas que tem o dever de entregá-lo a terceiro, ou mesmo, devolvê-lo a seu verdadeiro dono, ao se recusar a entregá-lo, pode vir a cometer o crime de apropriação indébita.

            Para caracterização da apropriação indébita, não há a necessidade de, na entrega do bem, haver uma finalidade específica, basta a posse ou a detenção, desde que livres de qualquer ato fraudulento, simulatório, bem como, emprego de força. A vontade posterior é que define o elemento subjetivo deste tipo penal e não a finalidade para a qual foi entregue o bem ao agente.

            Nas palavras de Fernando Capez, percebe-se claramente a distinção entre a posso e detenção legítimas, e a vontade de se apropriar ilegalmente. Neste ponto caracterizando o crime, destaca o autor: “É apenas o dolo, consubstanciado na vontade livre e consciente de apropriar-se da coisa alheia móvel, o que pressupõe a intenção de apoderar-se do res, o propósito de assenhorear-se dela definitivamente, ou seja, de não restituir, agindo como se dono fosse, ou de desviá-la do fim para que foi entregue.”[2]

            Este tipo penal possui seu momento consumativo quando o agente, já de posse ou detenção legítima do bem móvel, transforma a guarda em domínio, caracterizado pela ação de utilizá-lo como se proprietário fosse.

            A utilização caracterizadora do delito, deve vir acompanhada da vontade de se apropriar do bem alheio, posto não ser o uso o elemento do tipo penal prescrito no Art. 168. Se aceitar a utilização apenas, como elemento do crime de apropriação indébita, qualquer pessoa que empreste veículo de outra ficando de posse dele, ao utilizá-lo estaria cometendo o delito aqui estudado. Há a necessidade de se caracterizar a vontade de fazer seu o bem de outrem. Utilizando o mesmo exemplo, estando de posse o veículo, o agente não o devolve quando requerido, passando aí a utilizá-lo como se seu fosse. No segundo caso estaria caracterizado o delito pela vontade de apropriar-se de bem móvel pertencente a terceiro.

            Para a caracterização da apropriação indébita, deve haver a necessidade de se ter uma posse ou detenção legítima de bem móvel, e a posterior vontade de se apoderar do mesmo, recusando-se à devolução, fazendo uso como se aquele lhe pertencesse.

             Com relação a apropriação indébita tributária, alguns pontos ainda devem ser analisados. Muitos questionamentos acerca de ser possível a apropriação indébita de dinheiro são suscitados perante os tribunais, uma vez que, teoricamente, bens fungíveis não podem ser objeto do delito em estudo, posto haver a transferência do domínio já quando de sua entrega.[3]

            O Art. 1.280 do Código Civil prescreve que no caso do dinheiro entregue a guarda de outrem, por ser bem fungível, a irregularidade pode ser concretizada como ilegalidade com relação ao mútuo, enquadrado na Seção II, Capítulo V, do mesmo Código.

            Não se caracteriza como ato criminoso o fato de uma pessoa, estando de posse ou detenção de dinheiro alheio, fazer uso com se seu fosse, haja vista que, por ser um bem fungível, o domínio se transfere com a entrega deste a outrem. Na apropriação indébita o domínio se dá após a posse ou a detenção legítima, pela vontade do agente, e não pela entrega do bem. Nesta mesma linha de pensamento encontra-se Fernando Capez.[4]

            Na entrega do dinheiro a outrem pelo seu proprietário, transfere-se também o domínio. Não há, como também na apropriação indébita não pode haver, qualquer ilegalidade na entrega do bem. A irregularidade está na vontade posterior. Na apropriação indébita o ilícito se dá com a vontade de transferir o domínio, o que não é caracterizado nos casos de dinheiro, pelo fato do domínio se transmite com a entrega do bem.

            Assim, poderia-se concluir pela não caracterização do crime de apropriação indébita em âmbito tributário, haja vista tratar-se de retenção de dinheiro fiscal. Porém, no caso do não recolhimento de valores tributáveis, a ótica utilizada deve ser outra.

            O dinheiro não deixa de ser bem fungível em decorrência do enfoque fiscal dado a ele. Mas a forma de se transferir a posse ou a detenção deste dinheiro, pode tomar conotações diferentes das já estudas, quando se trata de direito tributário.

            Quando a coisa fungível é entregue a outra pessoa, transfere-se também o domínio, portanto, não haveria como caracterizar o crime de apropriação indébita. Mas quando este mesmo bem, no caso o dinheiro, é entregue a outrem para transferi-lo a terceiro, pode ser caracterizado o elemento subjetivo da apropriação indébita.

 2.1. Apropriação Indébita Tributária 

            A primeira ocorrência legislativa a suscitar a apropriação indébita tributária como infração penal, deu-se em 26 de agosto de 1960, com a publicação da Lei nº 3.807. A União instituiu neste ano sanções de natureza penal, incidindo sobre os empresários, pelo não recolhimento de contribuições previdenciárias.

            Já em 1964, esta penalidade foi estendida ao Imposto de Renda retido na fonte. A Lei nº 4357/64, em seu Art. 11, introduziu, na sistemática do Imposto de Renda, a caracterização do crime de apropriação indébita pela falta de recolhimento deste tributo, retido na fonte, aos cofres públicos. [5]

            Em 1967, com a edição do Decreto-lei nº 326/67, ato administrativo permitido pela constituição que vigorava na época, o não recolhimento do IPI passou a ser considerado crime de apropriação indébita, fazendo uma extensão do tipo prescrito pelo Art. 168 do Código Penal. Começava aí a nascer o Direito Penal Tributário.

            Com a edição da Lei nº 4.729/65, as condutas fraudulentas e simulatórias, como por exemplo a adulteração de notas e livros, passaram a ter uma conotação criminosa para efeitos de punição.

            A Lei nº 8.137/90, concentrou os ditos crimes tributários em apenas uma norma, conseguindo trazer  maior agilidade para o fisco na verificação destas infrações.

            Outras normas, como é o caso da Lei nº 9.249/95 e Lei nº 9.430/96, introduziram, num primeiro instante, conceituações novas ao Direito Penal Tributário, e, num segundo momento, promoveram a represtinação de conceitos já tratados por normas anteriores.

            Mesmo com a adição de novas leis, nada de novo surgiu acerca da apropriação indébita tributária. Assim, ficou o Estado adstrito às prescrições do Art. 2º, II, da Lei 8.137/90, com relação ao crime de apropriar-se de valores fiscais retidos na fonte.

            Com relação às contribuições previdenciárias, a Lei nº 8.121/91, apresentou uma lista de crimes, alguns dos quais, já elencados anteriormente como crimes contra a ordem tributária.

            Em 2000, por meio da Lei nº 9.983, publicada no Diário Oficial da União de 14 de julho daquele ano, o não recolhimento aos cofres públicos dos valores retidos de contribuições previdenciárias, passou a ser considerado crime de apropriação indébita, mas agora incurso no Código Penal pelo Art. 168-A.

            Com este breve relato histórico sobre os crimes contra a ordem tributária, analisando principalmente a apropriação indébita de valores fiscais, chega-se a conclusão da previsão do delito, restando agora saber se realmente há esta forma criminal dentro do Direito Tributário, em virtude de se tratar de retenção de bem fungível.

            Na apropriação indébita a entrega do bem é feita livre de qualquer irregularidade, como é o caso da retenção do Imposto de Renda na fonte, onde a lei transfere a responsabilidade pela retenção dos valores tributáveis à fonte pagadora. A caracterização do crime se dá pela vontade de não repassar o dinheiro retido aos cofres públicos, fazendo uso do mesmo como se seu fosse.

            A responsabilidade pela arrecadação do tributo pertence a pessoa jurídica ou física, caracterizada como sujeito passivo da obrigação tributaria. Nos termos do que prescreve o Art. 121 do Código Tributário Nacional, sujeito passivo da obrigação tributária é a pessoa jurídica ou física de direito público ou privado, de quem se exige o cumprimento da prestação pecuniária ao fisco.

            O Art. 121 do Código Tributário Nacional define duas figuras de sujeito passivo, o contribuinte e o responsável tributário. Contribuinte é a pessoa física ou jurídica, relacionada direta e pessoalmente com a situação que constitua o respectivo fato gerador. Já quanto ao responsável, este nasce da transferência, total ou parcial, por meio de lei, da obrigação tributária à outrem que não o contribuinte.

            A lei pode atribuir a outrem a responsabilidade pelo recolhimento aos cofres públicos, dos valores tributáveis devidos por aquele que tenha incorrido em uma situação definida como hipótese de incidência da obrigação tributária. Este procedimento tem sido adotado pelo fisco com o objetivo de facilitar a fiscalização e arrecadação de tributos.

            As leis que prescrevem a aplicação de tributos como imposto de renda, imposto sobre circulação de mercadoria e prestação de serviço, imposto sobre prestação de serviços de qualquer natureza e as contribuições previdenciárias, já prevêem a substituição tributária como forma de melhorar a arrecadação. Desta forma, nasce para àquele que tenha a responsabilidade tributária, o dever de reter os valores fiscais devidos pelo contribuinte de direito e transferi-los aos cofres públicos no momento oportunamente definido por lei. Na substituição tributária, o responsável recebe o dinheiro da retenção sem qualquer eiva de ilegalidade, e, posteriormente, o entrega ao fisco.

            O elemento subjetivo do crime de apropriação indébita tributária é o dolo genérico presente na vontade consciente e livre de não recolher aos cofres públicos o valor de tributo ou de contribuição social descontado do contribuinte de direito[6].

            A arrecadação pela substituição tributária, representa uma terceira função efetivamente delegada pela administração púbica ao responsável, que somente após a retenção do tributo e, dentro do prazo legal, é obrigado a entregá-lo ao Fisco. A permanência daqueles valores, que não lhe pertencem e nem decorrem de obrigação originária sua, gera a figura delitiva da apropriação indébita[7]. É a vontade subjetiva de apropriar-se dos valores retidos na fonte que caracteriza o delito prescrito no Art. 168 do Código Penal e não a negativa de pagamento do tributo.

            A substituição tributária tem por objetivo transferir a terceira pessoa a responsabilidade pela arrecadação de tributos devidos pelo contribuinte de direito. Transfere-se assim, a responsabilidade pela guarda do dinheiro e não o domínio. O dinheiro deve ser repassado ao fisco, pois, caso não o faça, o responsável pelo repasse, estará incorrendo em crime de apropriação indébita.

            Neste sentido, Fernando Capez, citando Nélson Hungria, ressalta:

“.... na hipótese em que o bem fungível, no caso o dinheiro, é confiado a alguém, pelo proprietário, para ser entregue a terceiro, como no caso do caixeiro-viajante ou de algum cobrador, pode ocorrer a apropriação indébita.”[8]

            A guarda de valores com objetivo de entregá-lo a terceira pessoa, retira do dinheiro a conotação de transferência de domínio presente nos bens fungíveis. O agente recebe ou retêm os valores tributáveis já com uma destinação pré-determinada.

            Segundo tese de Paulo José da Costa Jr. e Zelmo Denari[9], a pessoa responsável pela retenção do tributo devido por outrem, tem a obrigação de repassá-lo ao fisco dentro do prazo legal, pois, caso contrário, estaria, teoricamente, caracterizado o crime de apropriação indébita.

            Para o Direito Tributário, o verbo recolher possui o mesmo sentido de depositar quantia recebida ou retida, aos cofres públicos. Não recolher tributo é a forma negativa da conduta, a qual, complementada pela vontade de ter como seu os valores de outrem, caracteriza o crime de apropriação indébita.

            Assim, face à vontade do agente em apropriar-se de valores advindos da substituição tributária, faz nascer a figura delitiva do crime em estudo. O agente não tem o domínio com a retenção do dinheiro, mas somente a guarda deste. Ao negar-se a recolhê-lo, estará, por meio de sua vontade, transferindo o domínio deste bem, caracterizando o crime de apropriação na substituição tributária.

3.    Inexigibilidade de conduta adversa

            Com a caracterização da a existência do crime de apropriação indébita tributária, resta demonstrar a exclusão da culpabilidade pela inexigibilidade de conduta adversa.

            O agente de um delito, para ser punido, deve praticar uma ação típica, antijurídica e, principalmente, culpável. Pode haver um crime sem que haja a devida punição de seu agente, em virtude da falta do elemento culpabilidade.

            Para que haja o crime, formalmente deve estar presente um fato típico e antijurídico. Mas para a punição do agente, deve ser agregado o elemento culpabilidade. O agente pode praticar um ato prescrito por lei como crime e não ser punido por isso. O crime vai existir, entretanto, devido a causas excludentes da culpabilidade, este agente não será punido. A culpabilidade é pressuposto da  aplicação da pena, cuja imposição dela depende.

            Culpabilidade, segundo Fernando Capez, pode ser conceituada “como juízo de censurabilidade e reprovação exercido sobre alguém que praticou um fato típico e ilícito”[10]. As leis penais não definiram o teor do termo culpabilidade, ficando a cargo dos doutrinadores conceituá-la.

            O Código Penal brasileiro traz três elementos para a culpabilidade: a imputabilidade, a potencial consciência da ilicitude[11] e a exigibilidade de conduta adversa.

            A imputabilidade está relacionada com a capacidade de uma pessoa em entender o caráter ilícito de um fato típico e de se determinar de acordo com esse entendimento.

            A potencial consciência da ilicitude, basicamente pode ser entendida como o conhecimento da ilicitude do comportamento praticado.

            Já quanto a exigibilidade de conduta adversa, apresenta-se como a expectativa social de um comportamento diferente daquele que foi adotado pelo agente[12]. Não havendo conduta diversa a ser aplicada no caso, não haverá punição do agente, por falta de um dos elementos da culpabilidade. O crime existirá, porém, a aplicação da pena não será possível.

            A exigibilidade de conduta adversa, ou de comportamento conforme o direito, configura-se como um dos elementos da culpabilidade[13], e, por tal motivo, a impossibilidade de se tomar outra atitude que não aquela considerada crime, leva o agente a não ser penalizado por seu ato.

            A lei penal prevê duas hipóteses de inexigibilidade de conduta adversa: a coação moral irresistível e a obediência hierárquica.

            A coação moral irresistível configura-se na hipótese de uma pessoa praticar um ato delituoso, ou deixar de ter uma conduta legítima, por emprego de força ou grave ameaça por parte de outrem.

            O autor do delito neste caso, não tem outra coisa a fazer senão praticar o ato ilícito. Devido a coação sofrida, fica o agente impossibilitado de agir de maneira lícita.

            Com relação a obediência hierárquica, esta possui uma relação com o poder e a hierarquia. Apresenta-se como a obediência a ordem exarada por um superior hierárquico, não manifestamente ilegal, capaz de tornar viciada a vontade do subordinado e afastar a exigência de conduta diversa, a teor do Art. 22 do Código Penal.

            Estas causas são definidas pelo Código Penal como excludentes de culpabilidade pela inexigibilidade de conduta adversa, pois não deixam ao agente outra conduta a ser praticada.

            Entretanto, não são só estes hipóteses definidas pela lei capazes de afastar a culpabilidade por ato delituoso. Existem ainda causas supralegais de exclusão de culpabilidade.

            A inexigibilidade de conduta adversa deve ser encarada como um princípio geral da culpabilidade, onde somente será punido o agente por conduta delituosa, quando, podendo orientar-se de modo diverso, não o faz.

            Fernando Capez, citando pensamento de Goldschmit, traz a figura da motivação normal como pressuposto basilar da inexigibilidade de conduta adversa[14]. A normalidade de circunstância deve servir de base principiológica para a fixação da culpabilidade.

            Se uma situação se torna anormal para os padrões sociais e, esta falta de normalidade faz com que o agente não possa agir de conformidade com o preconizado em lei, retira deste a carga punitiva, portanto, aplicável a inexigibilidade de conduta adversa como excludente da culpabilidade.

            Seria inconcebível aplicar uma pena ao agente em hipótese nas quais, embora tenha o legislador esquecido de fazer a sua previsão, verifica-se a anormalidade de circunstâncias concomitantes, capazes de levá-lo a agir de forma diversa da que faria em uma situação normal.

            O Código Penal traz como base para a aplicação da penas o princípio da culpabilidade, ou nullum crimen sine culpa. Não há como se penalizar o agente se não houver os elementos da culpabilidade em seu ato.

            O próprio conceito de culpabilidade não foi definido pelo Código Penal. Deixou à doutrina tal responsabilidade. Se a exigibilidade de conduta conforme o direito é um dos elementos da culpabilidade, por que não se retira do seio de seu conceito, excludentes outras que não as duas definidas pelo Código Penal. Essa tese, em caráter excepcional, serviria de excludente da culpabilidade de agentes que tenham praticado determinados injustos. É verdade que a inexigibilidade de conduta adversa faz parte da coação moral irresistível e da obediência hierárquica, nos termos do Código Penal, mas é possível destacá-la para atuar isoladamente, pensamento este coadunado com Guilherme de Souza Nucci[15].

            Não se pode deixar a apenas duas ocorrências as causas de inexigibilidade de conduta adversa, principalmente pelo fato de imperar no direito penal o princípio da culpabilidade na aplicação das penas. Se não há elementos de culpabilidade em virtude da anormalidade de circunstâncias na prática de um ato, não se pode falar em penalização do agente, posto não lhe ser exigida outra conduta.

3.1. Inexigibilidade de conduta adversa no Direito Tributário, em face do tratamento diferenciado dispensado às microempresas e empresas de pequeno porte

            A conceituação de apropriação indébita tributária é perfeitamente aplicável ao direito tributário, haja vista a sua tipificação em leis disciplinadoras da matéria.

            Resta saber se a punição do agente do crime de apropriação indébita tributária é aplicável frente à inexigibilidade de conduta adversa em decorrência de dificuldades financeiras experimentadas pelas microempresas e empresas de pequeno porte.

            Firmou-se já o posicionamento de não se poder ficar adstrito apenas às duas causas de inexigibilidade de conduta adversa como excludente de culpabilidade trazidas pelo Código Penal. A exigibilidade de conduta adversa nasce da normalidade de circunstâncias promovedoras de meios de ação, capazes de conceder ao agente outra conduta que não a delitiva. Assim, a anormalidade de circunstâncias pode vir a acarretar ao agente a necessidade de agir em desconformidade com a lei, retirando de seu ato a culpabilidade.

            Trazendo este entendimento para o Direito Tributário, caracteriza-se a inexigibilidade de conduta adversa quando do não recolhimento de tributos retidos na fonte, por anormalidades de circunstâncias ocorridas no mercado econômico, chegando, via de conseqüência, a promoverem dificuldades financeiras a empresa.

            Devido a sua capacidade de faturamento, as microempresas e empresas de pequeno porte passam, muitas vezes por dificuldades financeiras advindas de desigualdades econômicas frente as grandes corporações.

            Pensando nestas dificuldades o legislador constituinte trouxe por meio de normas, o direito subjetivo às microempresas e empresas de pequeno porte a um tratamento diferenciado. Visa com isso, conceder meios equilibradores das relações econômicas entre as empresas, promovendo assim, condições para o exercício da livre concorrência.

            O Art. 179 da Constituição Federal dispõe sobre o tratamento diferenciado como um direito aos pequenos empresários. O Estado surge nesta relação como agente incentivador da atividade empresarial, desempenhando funções normativas e reguladoras do mercado econômico.

            Incentivar, segundo José Afonso da Silva[16], pode ser tratado como uma forma de fomento, muito utilizado pelo Império Romano, o qual consiste na proteção, no estímulo, na promoção, no apoio, no favorecimento, bem como, no auxílio, sem empregar meios coativos, às atividades particulares que satisfaçam necessidades ou conveniências de caráter geral. O desempenho de atividade empresarial satisfaz necessidades de caráter geral, por existir aí o cumprimento da função social da propriedade industrial.

            Com o objetivo de atender ao disposto nos Arts. 179 e 146, “d” da Constituição, a União editou a Lei nº 9.317, de 05 de dezembro de 1996, instituindo o sistema integrado para pagamento de tributos e contribuições federais – SIMPLES.

            A qualificação de microempresa e empresa de pequeno porte, foi definida pela legislação de acordo com o seu faturamento. A própria Lei nº 9317/96, em seus Arts. 2º e 3º, se incumbiu desta tarefa. Esta norma veio para amparar o Estado em seu papel de patrono da ordem econômica.

O Art. 179 prescreve ser o tratamento fiscal diferenciado um direito de qualquer empresa de pequeno porte ou microempresa, e não um benefício fiscal concedido pelo Estado. Benefício seria uma anistia, uma remissão ou mesmo uma isenção, mas não o tratamento mais benéfico determinado pela Constituição aos pequenos empresários.

O benefício fiscal, por ser uma renuncia de receitas, nasce por meio de lei, instituída através da competência tributária. Já o direito contido em uma norma subjetiva, vem como uma barreira limitadora desta competência, obrigando o Estado a atuar ou não.

No caso do Art. 179, a norma traz ao Estado um dever de agir, ou seja, criar os meios legais tendentes a conceder um tratamento fiscal diferenciado. Este tratamento diferenciado vem amparar o princípio da livre concorrência contido no Art. 170, IV, da Constituição. Ao Estado, como patrono da ordem econômica, é dado o dever de garantir a livre concorrência empresarial.

A condição de patrono da ordem econômica não deve ser encarada apenas como um ato repressivo, ao atuar impedindo a formação de cardeis, fusões fraudulentas, monopólios comerciais, mas também de forma preventiva.

            O direito à livre concorrência transfere ao Estado o dever de dar a todos os participantes do mercado econômico, meios de concorrer em igualdade de condições, seja de forma repressiva ou mesmo, preventiva, como é o caso do SIMPLES federal. Ao Estado é dado o dever de garantir não só o acesso dos empresários ao mercado econômico, mas também a sua manutenção neste. 

            Ao trazer restrições inconstitucionais à opção pelo SIMPLES federal, o Estado vai de encontro aos objetivos do patronato que lhe fora transferido. As restrições impostas, não relacionadas com o faturamento, trazem barreiras dificultosas a livre concorrência. Deixa a empresa adstrita a um tratamento tributário mais oneroso, causando um dano a seu exercício comercial.

            A impossibilidade de opção pelo SIMPLES, em virtude das restrições impostas pelo Art. 9 da Lei nº 9137/96, mostra-se por deveras inconstitucional, por ferir, entre outros, o princípio da igualdade, posto desferir tratamento diferenciado a empresas que se encontram em um mesma categoria, o de microempresa ou empresa de pequeno porte. Nenhuma diferença existe entre estas empresas, com relação ao faturamento. A capacidade contributiva de todas é a mesma. Assim, conceder o direito de optar pelo SIMPLES para umas, omitindo-se quanto a outras, caracterizaria tratamento desigual a quem se encontra em condições de igualdade.

            Os pequenos empresários enfrentam dificuldades para a manutenção de seu negócio no mercado econômico. Barreiras com relação a créditos em bancos, disponibilidade financeira para investimento e, principalmente, restrições impostas pelo fisco, podem excluí-las do mercado.

            As restrições impostas pelo Estado vêm como uma exceção ao regime instituído pela própria Lei 9317/96, cujo objetivo basilar é conferir maior viabilidade econômica e gerencial às microempresas e empresas de pequeno porte.

            Todas as empresas que possuem margem de faturamento dentro dos limites trazidos pelo Art. 2º, da Lei nº 9317/96, têm DIREITO a optarem pelo SIMPLES federal, posto terem a mesma capacidade contributiva, por isso, são iguais e assim devem ser tratadas.

            As limitações impostas pela Lei nº 9.317/96 acarretam restrições indiretas à livre concorrência, trazendo às microempresas e empresas de pequeno porte um prejuízo a seu exercício empresarial. Não há como as pequenas empresas sobreviverem num mercado econômico sem o apoio do Estado. Tanto é assim, que o próprio legislador constituinte previu um tratamento fiscal mais benéfico a elas, conforme prescrito pelo Art. 179 e 146, “d”. 

            Os pequenos empresários  que não são aceitos no SIMPLES federal, devido as restrições prescritas em seu Art. 9º, passam a sofrer prejuízos em suas relações comerciais, posto estarem obrigadas a recolher tributos por um regime não adequado a seu faturamento.

            As empresas de pequeno porte e microempresas, segundo determinação constitucional, devem receber um tratamento diferenciado.  Este tratamento é um direito subjetivo. Não pode ser ignorado pelo Estado. As dificuldades suportadas pela maior parte dos pequenos empresários, só são agravadas pela inobservância do Estado quanto a seu direito a um tratamento mais benéfico.

            A normalidade empresarial é o lucro. A falta de disponibilidade financeira é circunstância anormal para qualquer empresa. Em decorrência desta anormalidade, fica o empresário adstrito a utilizar meios considerados ilegais pela legislação tributária, para conseguir manter viva sua atividade empresarial.

Nem sempre os empresários que deixam de recolher aos cofres públicos, seja como contribuinte ou responsável tributário os valores advindos de tributação, são criminosos, mas inadimplentes, e assim devem ser tratados.

            A necessidade de se manter viva a empresa, faz com que os empresários passem a agir de forma contrária aos ditames tributários. Quando da retenção na fonte de valores tributáveis, estes não são repassados ao fisco, nem sempre se pode concretizar a vontade delitiva caracterizadora da apropriação indébita.

            Quando o pequeno empresário, diante de dificuldades financeiras advindas, principalmente, de uma política de desigualdade, ofensiva à livre concorrência de mercado, provocadas pelo próprio Estado, quando impõe restrições à opção pelo SIMPLES federal, aplica os valores retidos na fonte, para a manutenção da continuidade das atividades industriais, não há a vontade de se apropriar de bem alheio, mas a necessidade de utilizá-lo para manter viva a empresa.

            Se a empresa não paga seus fornecedores, ela não terá matéria prima para produzir. Se não paga seus empregados, não terá disponibilidade de mão de obra. A conseqüência destas ocorrências é a extinção da pessoa jurídica, acarretando a demissão dos funcionários e a perda de produtividade geral para o país. Conseqüências estas não mensuradas pelo Estado, quando promove suas imposições muitas vezes inconstitucionais.

            Não se pode exigir conduta adversa do empresário por utilizar valores tributáveis retidos na fonte, na intenção de manter a empresa viva, principalmente, tomando-se por base o fato de o próprio Estado contribuir para as condições anormais de faturamento experimentadas pelas empresas de pequeno porte e microempresas. 

            No caso das microempresas e empresas de pequeno porte excluídas do direito a um tratamento mais benéfico, não há a caracterização da vontade do empresário em transferir o domínio dos valores retidos na fonte, haja vista a necessidade de re-equilibrar suas atividades inexistência outra conduta a ser manifestada. O ato delitivo existe, mas o elemento culpabilidade, pressuposto da pena, não, impedindo, por conseqüência, sua aplicação.

            A inexigibilidade de conduta adversa, excludente da culpabilidade, deve ser aplicada em casos como este tratado no presente trabalho, posto acarretar ao agente a necessidade de atuar em desconformidade com a lei, em virtude da ocorrência de circunstâncias anormais promovedoras de meios de ação, que retiram do empresário a vontade de agir. Portanto, não pode este ser punido, visto faltar o elemento culpabilidade.

4. Função social da empresa e a punição por ato delituoso

            Diante de dificuldades financeiras ocasionadas por circunstâncias anormais provocadas muitas vezes direta ou indiretamente pelo próprio Estado, o elemento culpabilidade estaria excluído da apropriação indébita tributária, não sendo aplicável a penalização do agente pelo ato delituoso. O empresário, na tentativa de manter funcionando sua empresa, utiliza-se dos valores tributáveis retidos na fonte, para continuar a gerenciar empregos e o desenvolvimento econômico do país.

            Tem desta forma, mesmo que por ato considerado criminoso pelo fisco, a continuidade do exercício da função social da empresa, fundamento primordial para a prevalência de um desenvolvimento social mais igualitário.

            Assim, os reflexos da punição do empresário pelo crime de apropriação indébita, quando a utilização de valores tributáveis retidos na fonte para a manutenção das atividades da empresa, estes  podem ser sentidos por outros componentes do mercado econômico.

            Na atual conjuntura político-econômica vivenciada no Brasil, merece destacar as discussões em torno da função social da propriedade, na tentativa de esclarecer pontos duvidosos vertentes nas relações sociais.

            O tema propriedade sempre teve um papel de muita importância durante a evolução histórica do mundo. Entendia-se que a propriedade deveria atender apenas as necessidades de seu proprietário.

            Com o tempo, esta noção passou a ser encarada em uma linhagem de segundo plano pelas constituições de países como o México, que adotaram a pessoa humana como o bem primordial de uma nação.

            Neste ponto, o Direito Econômico surgiu como o dilatador do conceito de propriedade, incumbindo a esta, bem privado, ou mesmo público, a obrigação de cumprimento de uma função social.

            Do ponto de vista do Direito Civil, a destinação da propriedade compete exclusivamente ao proprietário escolher. Porém, observando a propriedade sob a ótica constitucional-econômica, percebe-se a necessidade desta cumprir com sua função social, a qual, caso não o faça, poderá acarretar o despojamento do bem das mãos de seu proprietário.

            Este instituto busca seu fundamento basilar no direito de propriedade, cujo conceito não se prende apenas a preceitos civilistas. Há ditames diversos em se tratando de propriedade e sua função, com relação a um Estado Liberal ou um Estado Social. Mas, em um aspecto ambos são unânimes: a propriedade deve cumprir sua função, qual seja, abarcar as necessidades não só de seu proprietária, como também de toda a sociedade, função esta, embasada nos ditames filosóficos introduzidos durante os anos de luta histórica do direito.

            Ao referir-se à propriedade, geralmente tem-se a idéia da divisão entre imóveis rurais e urbanos. Entretanto, o conceito de propriedade não pode ficar preso  apenas a estes bens, principalmente quando se trata da função social da empresa. A propriedade deve se ater também àqueles tendentes à produção, bens estes tidos como industriais.

            Para André Ramos Tavares, o direito econômico teve importância para esta nova conceituação de propriedade. “Parece uma realidade que o poder econômico – seja representado pela detenção de propriedades imóveis, de bens de produção, de tecnologia ou valor mobiliários – constitui um dos pressupostos do poder político”.[17] Se a propriedade industrial é considerada bem de produção, deve produzir para que atinja sua função social.

                A própria Constituição[18] traz determinação expressa de que a propriedade deve atender à sua função social: se é a produção, que produza; se é a moradia, dê-se a ela sua destinação. No caso dos bens industriais, devem estes produzir riquezas, criar empregos tendentes a auxiliar o desenvolvimento do país. Uma industria improdutiva não atende a determinação constitucional, não cumpre sua função social.

            Com a evolução do processo de  globalização, a idéia de propriedade não pode ficar adstrita apenas aos ditames privatistas, mas sim, com doses excessivas de constitucionalidade e preceitos sociológicos. Não mais se apresenta a propriedade como um direito individual. Deve ser protegida, impedindo o proprietário de ser despojado de seu bem ilegalmente. Porém, esta proteção será exercida para os bens cumpridores de sua função social.

            Com relação às empresas este preceito não é diferente. Devem atingir a satisfação social, nos termos expressamente trazidos pela Constituição.

            Para se entender a propriedade empresarial e sua função social dentro de uma compatibilização ideológica, necessário se faz compreender preceitos básicos de política econômica.

            A propriedade, inclusive a industrial, possui como finalidade “assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social”, nos termos do Art. 170, caput da Constituição.

            Uma empresa somente poderá assegurar a existência digna das pessoas envolvidas em sua produção, sejam direta ou indiretamente vinculadas, quando promover o seu crescimento econômico. Por isso pode-se dizer que o empresário deve ser ambicioso, pois de sua ambição nasce o desenvolvimento social de uma nação. Crescem os empregos, desenvolve o comércio, a urbanização, enfim, com a ambição saudável de um empresário, todos ganham, mesmo que de forma indireta.

            Mas não ficam só nestes preceitos a função social da empresa. Deve ela também desenvolver políticas internas com seus funcionários, como por exemplo, dar condições para o desenvolvimento seguro das atividades empresariais, políticas de incentivos salariais, a educação de seus empregados, bem como a sua saúde física e mental. As empresas podem também desenvolver políticas externas com seus empregados, como o auxilio ao gerenciamento familiar.

            Promovendo o desenvolvimento industrial de sua propriedade, sendo ambicioso, estará o empresário cumprindo sua função social, transferindo de certo modo, a cada componente da sociedade uma parte da riqueza criada.

            O caput do Art. 170 assegura a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social. Nota-se, destarte, o caráter distributivo prioritário ao comutativo. A iniciativa empresarial não traz apenas lucro ao empresário, mas também promove a distribuição de riquezas, cumprindo assim, parte de sua função social.

            A produção industrial aborda a questão do ato de produzir e do fato produção. Torna-se parte da política social, quando  introduz elementos sociais a seu conceito. Assim, o fato produtivo e o ato de produção industrial, promovem a distribuição de riquezas, trazendo a função social da empresas como vértice de uma economia desenvolvida.

            Mas esta função social desempenhada pelas empresas necessita de amparo governamental. Políticas de incentivo fiscal, por exemplo, podem ser adotadas com o intuito de baratear os custos de produção, fazendo com que o empresário invista mais em sua ambição industrial. Podendo o empresário dispor de maior quantidade de verbas para o desenvolvimento de sua empresa, conseqüentemente a função social desempenhada por ela tende apenas a crescer.

            Não basta só exigir dos empresários o cumprimento de sua função social, é necessário  que o Estado participe também deste processo.

            A  maioria das empresas de pequeno porte e microempresas, passam por dificuldades financeiras devido ao não exercício de um direito subjetivo trazido pela Constituição. O Art. 179 da Constituição determina que o Estado deve dispor a estas empresas um tratamento fiscal, contábil e comercial diferenciado, objetivando a prevalência dos princípios da livre concorrência e da igualdade.

            Estas determinações servem para equilibrar o mercado econômico e conceder oportunidades iguais a todas as empresas que nele estejam atuando. O Estado assim, conforme já demonstrado, passa a desempenhar um papel importante na ordem econômica, ou seja, o de regulador das relações comerciais entre os particulares.

            A lei do SIMPLES veio para regulamentar o disposto pelo Art. 179 da Constituição, e, auxiliar o Estado no patronato que lhe foi transferido. 

            Ao Estado é dado o dever não só de garantir o livre acesso ao mercado econômico às empresas, mas também o de garantir a sua permanência, por meio de políticas que garantam a livre concorrência e a igualdade de competição.

            Impondo restrições ao direito à opção pelo SIMPLES federal às empresas de pequeno porte e microempresas, promove o Estado, por via de conseqüência, um desequilíbrio econômico em suas atividades empresariais passíveis de acarretar dificuldades financeiras promotoras de circunstâncias anormais, impedindo estas de cumprirem sua função social.

            Diante de dificuldades financeiras, ocorridas principalmente por ofensas ao principio da livre concorrência, o empresário se vê obrigado a agir de maneira reprovável pela sociedade. Utiliza-se dos valores tributáveis retidos na fonte com o intuito de manter as operações de sua empresa.

            Não há vontade do empresário em transferir o domínio do dinheiro pertencente ao fisco, mas a necessidade de utilizá-lo na tentativa de gerenciar as dificuldades financeiras vivenciadas no momento. Portanto, exclui-se a culpabilidade pela inexigibilidade de conduta adversa, não havendo a penalização do empresário.

            Entretanto, caso haja a penalização do empresário, não se admitindo a inexigibilidade de conduta adversa para o Direito Tributário[19], os reflexos danosos a sociedade são ainda maiores que os benefícios a arrecadação do Estado.

            Ao penalizar o empresário, a conseqüência pode vir a ser a extinção da empresa, acarretando a demissão dos empregados e a diminuição da produtividade geral no Brasil, prejudicando assim, a distribuição de riqueza.

            A conseqüência da punição do empresário pode vir a tomar proporções mais danosas a sociedade, visto aumentar a taxa de desemprego. E mais, os reflexos desta punição poder chegar a prejudicar o próprio mercado consumidor, causando um desequilíbrio à ordem econômica.

            O desempregado não possui disponibilidade financeira para comprar, portanto, deixa de adquirir bens produzidos por outras empresas. Estas por sua vez, tendem a diminuir sua produção visto não haver consumo, deixando de contratar ou, até mesmo, demitindo seus funcionários para se adequarem à necessidade do mercado.

            A punição do pequeno empresário que, por motivos de dificuldades financeiras provocadas por circunstâncias anormais, utiliza valores tributáveis retidos na fonte para manter a atividade de sua empresa, tem reflexos danosos em toda o mercado econômico. Funciona como um incêndio, começa isolado, mas pode vir a tomar proporções gerais.

            Portanto, o cumprimento da função social da microempresa e empresa de pequeno porte, como propriedade industrial, depende de políticas de incentivos do próprio Estado, e não da punição do empresário.

4.    Conclusão

Pelo exposto pode-se concluir, que para a caracterização da apropriação indébita, deve-se ter a posse ou detenção legítima de bem móvel, e a posterior vontade de se apoderar do mesmo, recusando-se a devolve-lo, utilizando-se como se fosse seu.

            Assim, deve ser ressaltado que não caracteriza  crime de apropriação indébita tributária, quando do não recolhimento aos cofres públicos de valores retidos, por força da legislação aplicável. No entanto, a vontade do agente em apropriar-se de valores advindos da substituição tributária, faz nascer a figura delitiva do crime tributário em questão. O agente não tem o domínio com a retenção do dinheiro, mas somente a guarda deste. Ao negar-se a recolhê-lo, estará, por meio de sua vontade, transferindo o domínio deste bem, caracterizando o crime de apropriação na substituição tributária.

Para que haja o crime, formalmente deve estar presente um fato típico e antijurídico. Mas para a punição do agente, deve ser agregado o elemento culpabilidade. O agente pode praticar um ato prescrito por lei como crime e não ser punido por isso. O crime vai existir, entretanto, devido a causas excludentes da culpabilidade e este agente não poderá ser punido. A culpabilidade é pressuposto de aplicação da pena,  cuja imposição dela depende.

Já quanto a exigibilidade de conduta adversa, apresenta-se como a expectativa social de um comportamento diferente daquele que foi adotado pelo agente, conforme apresentado no texto do presente artigo. Não havendo conduta diversa a ser aplicada no caso, não haverá punição do agente, por falta de um dos elementos da culpabilidade. O crime existirá, porém, a aplicação da pena não será possível.

A inexigibilidade de conduta adversa deve ser encarada como um princípio geral da culpabilidade, onde somente será punido o agente por conduta delituosa, quando, podendo orientar-se de modo diverso, não o faz.

Se não há elementos de culpabilidade em virtude da anormalidade de circunstâncias na prática de um ato, não se pode falar em penalização do agente, posto não lhe ser exigida outra conduta.

O Art. 179 da Constituição Federal  prescreve  que o tratamento fiscal diferenciado é um direito constitucional de qualquer empresa de pequeno porte ou microempresa, e não um benefício fiscal concedido pelo Estado, por critérios meramente estabelecidos em lei.

A impossibilidade de opção pelo SIMPLES, em virtude das restrições impostas pelo Art. 9º da Lei nº 9137/96, caracteriza como inconstitucional, por contrariar o princípio da igualdade, o princípio da livre iniciativa e da livre concorrência, entre outros, posto desferir tratamento diferenciado a empresas que se encontram em um mesma categoria, o de microempresa ou empresa de pequeno porte.

Nem sempre podem ser considerados como criminosos os empresários que deixam de recolher aos cofres públicos, os valores advindos de tributação, seja como contribuinte ou responsável tributário. Devem ser tratados, portanto como inadimplentes.

Não se pode exigir conduta adversa do empresário por utilizar valores tributáveis retidos na fonte, na intenção de manter a empresa.

O Art. 179 da Constituição determina que o Estado deve dispor a estas empresas um tratamento fiscal, contábil e comercial diferenciado, objetivando a prevalência dos princípios da livre concorrência e da igualdade.

            Estas determinações servem para equilibrar o mercado econômico e conceder oportunidades iguais a todas as empresas que nele estejam atuando. O Estado assim, conforme já demonstrado, passa a desempenhar um papel importante na ordem econômica, ao  regular as relações comerciais entre os particulares.

            A Lei 9.137/96 que instituiu o  SIMPLES, veio para regulamentar o disposto pelo Art. 179 da Constituição, e, não dificultar a atuação dos empresários na condução das atividades das microempresas e empresas de pequeno porte

            Ao Estado é dado o dever não só de garantir o livre acesso ao mercado econômico às empresas, mas também o de garantir a sua permanência, por meio de políticas que garantam a livre concorrência e a igualdade de competição.

Impondo restrições ao direito à opção pelo SIMPLES federal às empresas de pequeno porte e microempresas, promove o Estado, por via de conseqüência, um desequilíbrio econômico em suas atividades empresariais passíveis de acarretar dificuldades financeiras promotoras de circunstâncias anormais, impedindo estas de cumprirem sua função social.

Assim, se não for atendidos os ditames constitucionais estatuídos no artigo 179 e demais dispositivos da Carta Política de 1988, estar-se-á diante de inconstitucionalidades. Desta forma, pode-se concluir, que o  legislador constitucional ao assegurar  um direito com a mão direita não pode o legislador ordinário ou o aplicador da lei,  retirar esse direito com a mão esquerda.

Os conteúdos do art. 179, não podem ser considerados dispositivos  inúteis, tendo este especificamente suas funções na ordem econômica e na função social da empresa. Por isso a legislação infraconstitucional e o comportamento dos agentes do fisco devem ser coerentes com referido dispositivo constitucional.

 

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Novembro/2004.

 


 

NOTAS:

 

[1] - A Lei 9.137 de 05 de dezembro de 1.996, dispõe sobre o regime tributário das microempresas e das empresas de pequeno porte instituindo o Sistema Integrado para pagamentos de tributos e contribuições federais simples. 

[2] CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, 7ª ed. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2003.  p.  452.

[3] Este posicionamento não é seguido pela corrente majoritária do STF – http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/jurisp.asp.

 

[4] Op. Cit. Pág. 452.

[5] MARTINS, Ives Gandra da Silva. Da sanção tributária. São Paulo: Saraiva, 1980. p. 99.

[6] COSTA JR; Paulo José. DENARI, Zelmo, Infração tributária e delitos fiscais. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 136.

[7] MARTINS, Ives Gandra da Silva. Op. cit, p. 100.

[8] CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal. 3ª. ed. v. 2. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 448.

[9] Infração tributária e delitos fiscais. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998.  p. 136.

 

[10] CAPEZ, Fernando. Op. cit., v. 2, p. 448

[11] Francisco Vani Bemfica, prefere dar ao termo potencial consciência da ilicitude a denominação de possibilidade de conhecer o injusto. Entretanto, a conceituação é a mesma utilizada por nós neste trabalho, ou seja, “o conhecimento da ilicitude do comportamento, para que se considere punível” (BEMFICA, Francisco Vani, Da teoria do crime, p. 172. São Paulo: Saraiva, 1990).   

[12] CAPEZ, Fernando. Op. cit., v. 1, p. 308

[13] BEMFICA, Francisco Vani, Op. cit., p. 213.

[14] CAPEZ, Fernando. Op. Cit., v. 1, p. 312.

[15] Código Penal Comentado, 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 158.

[16] Curso de Direito Constitucional Positivo, 16ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p.782.

[17] Direito Constitucional Econômico. São Paulo: Método, 2003.  p. 159.

[18] Artigo 5º, inciso XXIII.

[19] Os Tribunais Regionais Federais da terceira e quarta regiões, vêem entendendo ser aplicável a inexigibilidade de conduta adversa nos casos de não recolhimento ao fisco de valores retidos na fonte, devido à dificuldades financeiras experimentadas pela empresa.

 


 

(*)  Mestrando em Direito da UNIMAR – Marília, Advogado, Professor do Curso de Direito da UNIMEP – Campus de Lins, Professor do Centro de Estudos Jurídicos PROORDEM de Marília, Professor do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu da INTEGRALE de Bauru.

 

(**) - Doutora em Direito Tributário pela PUC/SP. Coordenadora do Curso de Mestrado em Direito da UNIMAR.


 

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